Na esquina da Rua da Saudade com a Avenida Cunha, ele sempre esteve lá, um vulto encurvado, quase imóvel, de olhos semicerrados, como quem observa de longe, sem pressa nem alarde, era chamado de "Zé da Esquina", ninguém sabia seu verdadeiro nome, passava despercebido, invisível na paisagem, ninguém notava, ninguém dava importância, a vida corrida da cidade seguia em frente, indiferente ao homem que se cobria com um cobertor ralo e dormia na calçada.
Dona Adelaide, esposa de um advogado proeminente e exemplo de moralidade na rua, passava apressada em seu tailleur azul-marinho, o cabelo perfeitamente preso e o olhar direto, Zé da Esquina a observou como quem não quer nada, murmurou algo:
— Sai cedo hoje, hein, dona Adelaide? O doutor sabe dessa "aula de pilates" que a senhora tem com o professor?
Ela parou, o coração acelerado, a expressão rígida. Como ele sabia? O marido, sempre tão ocupado no escritório, jamais saberia de seu caso discreto com o instrutor de pilates, virou-se, os olhos duros, mas ele já olhava para outro lado, como se falasse com o vento, na semana seguinte, foi a vez do seu Nelson, dono da padaria, Zé com a sua voz rouca, soltou um comentário casual enquanto o padeiro passava carregando sacos de farinha.
— Esses pães vão precisar de fermento novo, hein, seu Nelson? O senhor devia experimentar uma receita diferente, já que anda vendendo pão dormido como se fosse do dia, Seu Nelson parou, a boca entreaberta. Como ele sabia? Com os preços subindo e o pão sobrando, fazia semanas que andava misturando pão de um dia anterior com a fornada nova, os fregueses nunca tinham desconfiado, mas ali estava ele, o Zé da Esquina e ele não parou por aí. Numa tarde, chamou Ygor Ramos, que passava ligeiro na calçada oposta, todos o conheciam na vizinhança, Ygor era um homem discreto, contido, e dizem com um passado diferenciado, mas ninguém falava muito sobre isso, aliás poucos sabiam que anos atrás, Ygor era Yngrid Graziela Oliveira Ramos, até que finalmente mudara de nome, cidade e identidade, em busca de uma nova vida e de ser quem realmente era, Ygor apertou o passo quando ouviu a voz rouca:
— Tá se escondendo de si mesmo ainda, senhor Ygor? Ou só dos vizinhos? — murmurou velho mendigo, em um tom casual, quase amistoso.
Ygor congelou por um instante, baixou a cabeça, respirou fundo e seguiu adiante, fingindo que não tinha ouvido, mas sua mente já era um turbilhão, ele tentava viver de forma discreta, sem chamar atenção, sem expor seu passado, porém o mistério se espalhou, na rua, as conversas tornaram-se cheias de insinuações, vozes baixas e olhares de canto de olho, todos se perguntavam o mesmo: como aquele simples homem, que nada parecia enxergar, sabia tanto? Mariazinha, a doceira da esquina, foi uma das próximas, orgulhosa, sempre dizia que seus doces eram feitos com o amor de mãe e o bairro todo a adorava por isso, ao passar pelo sábio mendigo, ouviu a frase:
— E aquele açúcar refinado que a senhora anda colocando? Dizem que é melhor, mas cadê o “amor de mãe” nos docinhos de caixinha?
Ela estremeceu, a vergonha queimou-lhe o rosto, há meses vinha substituindo ingredientes naturais por opções mais baratas, mas fazia questão de anunciar “caseiro” em letras garrafais no cardápio, quem iria desconfiar? Mas ali estava ele, o invisível, o “Zé da Esquina”, a cutucar sua consciência. No meio da rua, uma casa grande, com janelas fechadas e misteriosas, trazia uma placa amarela e enferrujada com letras vermelhas: "CUIDADO COM O CACHORRO", dizia-se que ali morava uma senhora viúva, tão discreta, mas ninguém a via saindo, as crianças do bairro contavam histórias sobre aquela casa e o misterioso cachorro que ninguém jamais vira, mas que todos temiam, Zé da Esquina, por algum motivo, parecia observar essa casa com mais frequência, os olhos seguindo o movimento quase nulo que se passava do lado de dentro, de vez em quando, era visto trocando um olhar longo e fixo com a placa da entrada, como se soubesse o que se escondia por trás daquele anúncio, mas ele nunca dizia nada a respeito.
O rumor se tornou assunto nas rodas de conversas no bairro, cada morador passava olhando para Zé com mais cautela, tentando fingir desinteresse, enquanto temia que, a qualquer momento, ele pudesse sussurrar alguma verdade inconveniente sobre suas vidas e Zé parecia sentir o temor e a angústia na rua, sorria de leve, um sorriso que os outros não viam, mas que ele saboreava a cada murmúrio, a cada suspiro contido ao seu redor. Foi então que decidiram agir, numa tarde abafada, os moradores se reuniram em frente ao edifício da Rua da Saudade, Dona Adelaide, seu Nelson, Mariazinha, até o padre João, que nunca admitiria, mas guardava a sensação de que Zé também sabia de algumas confissões comprometedoras e entre eles, o garboso Ygor Ramos, com os seus olhos baixos e inquietos, estavam todos lá, encorajando-se mutuamente, decidiram confrontar o mendigo e fazê-lo confessar de onde vinha todo aquele conhecimento, Zé os recebeu com o mesmo sorriso enigmático, Dona Adelaide, altiva, tomou a frente:
— Escuta aqui, seu… seu Zé! O senhor está causando intriga na nossa rua, queremos saber como sabe de coisas que não deveria saber! Zé deu de ombros e riu, uma risada que saiu mais como um gemido de cansaço.
— Eu só observo, dona, só vejo o que tá aí, na cara de vocês, vocês falam demais, escondem de menos, a cidade tá cheia de vidraça e espelho, quem souber ver encontra o que quiser.
A multidão silenciou, em cada rosto, uma expressão de vergonha. As confidências trocadas no café, os telefonemas apressados, as pequenas traições do cotidiano, tudo ali, visível, talvez ele não soubesse de nada em especial, talvez só prestasse mais atenção aos gestos, às palavras ditas ao vento, Zé levantou-se, encostou seu cobertor nos ombros e, como quem diz uma última verdade amarga, sussurrou para os que estavam mais perto:
— Vocês têm medo de mim porque eu sou o reflexo de tudo que escondem, se querem parar de temer o que eu sei, talvez seja hora de viver uma vida que não precise ser escondida, Ygor Ramos, observando tudo em silêncio, recuou para as sombras, ainda carregando o peso de seu próprio segredo, com um aceno breve, Zé sumiu pela esquina da rua, lançando um último olhar para a casa da placa "CUIDADO COM O CACHORRO", ninguém jamais saberia o que aquele homem realmente sabia sobre aquela casa — ou sobre o cachorro que nunca latia, ao menos, enquanto houvesse segredos guardados nas esquinas daquela rua, Zé da Esquina sempre estaria por perto, vendo o que ninguém mais ousava enxergar.
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